As origens
adormecidas despertaram na viagem, memórias de infância passaram a
fazer-lhe companhia no convés, resolveu registá-las em diário.
Escrever já fora uma estratégia de sobrevivência, conseguira as
primeiras poupanças escrevendo às famílias daqueles que, como ele,
haviam emigrado para o Brasil mas eram analfabetos. Oito anos depois
viajava de novo, sentido distinto (em primeira classe), para começar
outra vida. O verde da ilha mãe voltara-lhe à memória, nostalgia
romanceada... partira por que a fome era mais forte que o azul do
céu, agora lembrava as nuvens nas terras altas, e as brumas junto ao
chão.
Relembrava-se nas
palavras escritas, surpreendia-se ao relê-las, por encontrar novos
significados: conquistara tudo, resistira ao tempo e ao espaço,
fizera tudo para apagar a fome e o passado. Viajar de novo era o
recomeço, sonhara-se outro homem no Brasil mas... percebera-se uma
impossibilidade: não criaria raízes onde tudo lhe recordava o
princípio. Decidira partir. Falaram-lhe das oportunidades no negócio
dos vapores, da aposta na cultura do café, da necessidade de
mão-de-obra para as ilhas, e não hesitara: o novo destino era uma
oportunidade de lucro. Limpo.
Investira na
Companhia União Mercantil, a recente regularidade das escalas dos
vapores nas ilhas incentivara-o, e reatara contacto com um antigo
sócio, sediado em Angola, olhos e ouvidos junto do governador: a
estratégia recompensara. Obtivera uma declaração, assinada pelo
representante da Coroa Portuguesa, que lhe permitia o transporte
regular de "... 10 escravos libertos e de portugueses livres de
cor..." entre as ilhas. A sociedade formada com o representante
angolano, que só trabalhava com nativos do interior, permitira-lhe
prosperar o suficiente para adquirir título nobiliárquico.
Contratara perceptor e viajara pela Europa, a bolsa abrira-lhe as
portas dos salões e os camarotes na ópera, gerira os negócios por
procuração, mas não se habituara aos Invernos e regressara ao
arquipélago.
O transporte da
biblioteca, adquirida em alfarrabistas e livreiros do continente
"eurodito", foi um acontecimento que se tornou estória da
praia: muitos homens transportaram às costas, entre o bote e a
areia, dezenas de caixotes com livros. Desencaixotar e arrumar os
espécimes ocupara-lhe grande parte do tempo, rabiscara uma espécie
de novela sobre o seu périplo europeu, mas desistira por não lhe
reconhecer autenticidade; cumprira com as suas funções sociais,
rituais das oligarquias locais, paulatinamente.
- Livro, que nem o do padre...
- Tantos... se dizem todos o mesmo...
- São todos diferentes, cada um tem suas estórias, todos juntos são uma biblioteca.
- Biblioteca não fala, não olha, não ri, não conta... como os mais velhos.
Quando os contactos
junto do poder lhe anunciaram a inevitabilidade da mudança, decidira
partir de novo; as manobras diplomáticas da Grã-Bretanha já tinham
obrigado ao abandono dos vapores para transportar os trabalhadores,
fretar veleiros era cada vez mais arriscado... os britânicos falavam
em escravatura, escravos... tinham documentos, eram contratados...
Aos abolicionistas explicara como o seu negócio era fornecer
trabalhadores, estava tudo confome a lei – eles traziam documentos
e contrato assinado, o que acontecia depois... não era da sua conta.
Trabalhara nas plantações do Brasil, fora aí onde começara como
capataz, nas roças não era muito diferente... escravatura? Trabalho
duro. Uns nasceram para mandar e outros para trabalhar. Resignado à
mudança dos tempos, decidira apostar no negócio do carvão, rumava
a outro arquipélago atlântico. Recomeçaria.
Seis
meses após se fixar em Mindelo, criara uma rotina diária
inflexível: passear ao entardecer, junto à água, com as ondas;
entretinha-se reflectindo sobre as coincidências padronizadas das
suas memórias (cuja escrita jamais abandonaria). A fama de
celibatário nobre e devoto, pois contribuía profusamente para todas
as paróquias, congregações e festas religiosas, conquistara-a
assim: passeando à beira-mar; tudo isto acicatava as jovens
casadoiras e tornava as matronas indulgentes. Assim se instituiu na
ilha, em finais do século XIX, o "passeio das quase noivas ao
entardecer", tradição das elites insulares – retratada em
quadros crioulos e impressivos, como "Passeio das Quase Noivas",
"Quase Noivas ao Lusco-Fusco" ou "Entardecer das Quase
Noivas".
Senhor me comprou
para vir cuidar da sua casa, Santa Efigénia ouviu minhas preces, me
deu nova vida longe, sofrimento pesa menos fora da roça; agora tem
passaporte, chão noutra ilha. Oxum me guarda a memória, não sou
sozinha no mundo, tem mar azul e viagem não termina ainda. Vida tem
ondas que nem mar, vai e vem, volta diferente. Vida acordada tem
voltas que nem sonho, acende e apaga sem sentido, dez anos passaram
rápido. Senhor disse, estás livre e podes partir, ainda não sabe
que solidão também mata, partir para onde?
Durante as passeatas
ao lusco-fusco, cada vez menos solitárias ou propícias à
introspecção, interrompendo-se em cumprimentos, percebeu-se
ansioso por solidão. Resolveu planear uma excursão solitária até
ao outro lado da ilha, propôs-se à redacção de uma crónica para
a imprensa local, cujo título seria “Impressões de viagem”. Foi
aplaudido e amparado pelos seus pares sociais, desdobraram-se em
contactos para lhe preparar estadia condigna: ficaria alojado em casa
de abastado português, portanto um compatriota continental. Foi
recebido de forma principesca, uma família farta e tão numerosa
quanto os serviçais internos; jantaremos sozinhos, explicara o
rubicundo beirão tropicalizado, as mulheres estorvam o entendimento
e prendem-nos a língua. Acordou, na tarde seguinte, com a luz
ferindo-lhe os olhos, a boca muito seca, sabor a aguardente-de-cana;
ouviu baterem na porta, uma voz informou-o da refeição que o
esperava na sala de jantar.
-
Bom dia, senhor...?
-
Ulisses... (voz, inferno)
-
Ulisses?
-
Sim, foi o meu padrinho a dar-me o nome. É o nome de um herói
antigo, de um grande herói muito antigo, rei de uma ilha. Ajudou
outro rei numa guerra.
-
E depois? (olhos, limbo)
-
Depois a guerra não acabava mais, cercaram o inimigo muitos anos mas
ele resistia. Já todos estavam cansados mas nada se resolvia, foi
Ulisses quem ajudou a conseguir a vitória. Depois... ele e os
marinheiros voltavam para a sua ilha quando se levantou uma enorme
tempestade. Perderam-se no mar por muitos anos, houve sempre
problemas e obstáculos, não encontravam o caminho de casa.
-
Ele só queria voltar para casa, tinha a mulher e o filho à espera,
a ilha estava sem rei... (sorriso, paraíso)
-
Afinal conhece a história?
Apenas haviam
trocado frases, os dois poucos minutos, a matrona interrompera-os
para não mais abandoná-los, como não a vira no dia anterior?, a
sós. Horas depois regressara a casa, que desculpa poderia ter
arranjado para ficar mais tempo?, esperavam-no os negócios e o
artigo para o jornal, fizera o caminho de volta numa espécie de
transe silencioso. Percebera que a ordem aprendida (eterna idade) do
mundo podia ser erro e remorso, por que a havia confundido com uma
serviçal?, ou culpa. Dois corvos acompanharam-no parte do caminho,
imerso nos seus próprios sentidos, não lhes capturou a presença .
Três semanas que o
senhor não dormia como antes, passeava como os apaixonados,
caminhava no soalho, noite atrás de noite, tinta e papel, tinta e
papel... nas manhãs, trazia cara quase cova, sorriso quase dor, voz
suspiro fundo... Pedi a Oxum para lhe iluminar os sonhos, a Santa
Efigénia pedi também. Ontem, primeiro tinta e papel, tinta e papel,
depois dormiu... hoje, tinha brilho fogo nos olhos, decidiu viajar
amanhã. Oxum, senhor vai no caminho do sonho acordado, Santa
Efigénia, senhor vai no caminho do coração apressado... Oxum vai
lhe guiar os passos, Santa Efigénia vai também.
M. Lisboa: 2014
Parque das Nações - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor) |
Sem comentários:
Enviar um comentário