quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A viagem


As origens adormecidas despertaram na viagem, memórias de infância passaram a fazer-lhe companhia no convés, resolveu registá-las em diário. Escrever já fora uma estratégia de sobrevivência, conseguira as primeiras poupanças escrevendo às famílias daqueles que, como ele, haviam emigrado para o Brasil mas eram analfabetos. Oito anos depois viajava de novo, sentido distinto (em primeira classe), para começar outra vida. O verde da ilha mãe voltara-lhe à memória, nostalgia romanceada... partira por que a fome era mais forte que o azul do céu, agora lembrava as nuvens nas terras altas, e as brumas junto ao chão.

Relembrava-se nas palavras escritas, surpreendia-se ao relê-las, por encontrar novos significados: conquistara tudo, resistira ao tempo e ao espaço, fizera tudo para apagar a fome e o passado. Viajar de novo era o recomeço, sonhara-se outro homem no Brasil mas... percebera-se uma impossibilidade: não criaria raízes onde tudo lhe recordava o princípio. Decidira partir. Falaram-lhe das oportunidades no negócio dos vapores, da aposta na cultura do café, da necessidade de mão-de-obra para as ilhas, e não hesitara: o novo destino era uma oportunidade de lucro. Limpo.

Investira na Companhia União Mercantil, a recente regularidade das escalas dos vapores nas ilhas incentivara-o, e reatara contacto com um antigo sócio, sediado em Angola, olhos e ouvidos junto do governador: a estratégia recompensara. Obtivera uma declaração, assinada pelo representante da Coroa Portuguesa, que lhe permitia o transporte regular de "... 10 escravos libertos e de portugueses livres de cor..." entre as ilhas. A sociedade formada com o representante angolano, que só trabalhava com nativos do interior, permitira-lhe prosperar o suficiente para adquirir título nobiliárquico. Contratara perceptor e viajara pela Europa, a bolsa abrira-lhe as portas dos salões e os camarotes na ópera, gerira os negócios por procuração, mas não se habituara aos Invernos e regressara ao arquipélago.

O transporte da biblioteca, adquirida em alfarrabistas e livreiros do continente "eurodito", foi um acontecimento que se tornou estória da praia: muitos homens transportaram às costas, entre o bote e a areia, dezenas de caixotes com livros. Desencaixotar e arrumar os espécimes ocupara-lhe grande parte do tempo, rabiscara uma espécie de novela sobre o seu périplo europeu, mas desistira por não lhe reconhecer autenticidade; cumprira com as suas funções sociais, rituais das oligarquias locais, paulatinamente.

- Livro, que nem o do padre...
- Tantos... se dizem todos o mesmo...
- São todos diferentes, cada um tem suas estórias, todos juntos são uma biblioteca.
- Biblioteca não fala, não olha, não ri, não conta... como os mais velhos.

Quando os contactos junto do poder lhe anunciaram a inevitabilidade da mudança, decidira partir de novo; as manobras diplomáticas da Grã-Bretanha já tinham obrigado ao abandono dos vapores para transportar os trabalhadores, fretar veleiros era cada vez mais arriscado... os britânicos falavam em escravatura, escravos... tinham documentos, eram contratados... Aos abolicionistas explicara como o seu negócio era fornecer trabalhadores, estava tudo confome a lei – eles traziam documentos e contrato assinado, o que acontecia depois... não era da sua conta. Trabalhara nas plantações do Brasil, fora aí onde começara como capataz, nas roças não era muito diferente... escravatura? Trabalho duro. Uns nasceram para mandar e outros para trabalhar. Resignado à mudança dos tempos, decidira apostar no negócio do carvão, rumava a outro arquipélago atlântico. Recomeçaria.

Seis meses após se fixar em Mindelo, criara uma rotina diária inflexível: passear ao entardecer, junto à água, com as ondas; entretinha-se reflectindo sobre as coincidências padronizadas das suas memórias (cuja escrita jamais abandonaria). A fama de celibatário nobre e devoto, pois contribuía profusamente para todas as paróquias, congregações e festas religiosas, conquistara-a assim: passeando à beira-mar; tudo isto acicatava as jovens casadoiras e tornava as matronas indulgentes. Assim se instituiu na ilha, em finais do século XIX, o "passeio das quase noivas ao entardecer", tradição das elites insulares – retratada em quadros crioulos e impressivos, como "Passeio das Quase Noivas", "Quase Noivas ao Lusco-Fusco" ou "Entardecer das Quase Noivas".

Senhor me comprou para vir cuidar da sua casa, Santa Efigénia ouviu minhas preces, me deu nova vida longe, sofrimento pesa menos fora da roça; agora tem passaporte, chão noutra ilha. Oxum me guarda a memória, não sou sozinha no mundo, tem mar azul e viagem não termina ainda. Vida tem ondas que nem mar, vai e vem, volta diferente. Vida acordada tem voltas que nem sonho, acende e apaga sem sentido, dez anos passaram rápido. Senhor disse, estás livre e podes partir, ainda não sabe que solidão também mata, partir para onde?

Durante as passeatas ao lusco-fusco, cada vez menos solitárias ou propícias à introspecção, interrompendo-se em cumprimentos, percebeu-se ansioso por solidão. Resolveu planear uma excursão solitária até ao outro lado da ilha, propôs-se à redacção de uma crónica para a imprensa local, cujo título seria “Impressões de viagem”. Foi aplaudido e amparado pelos seus pares sociais, desdobraram-se em contactos para lhe preparar estadia condigna: ficaria alojado em casa de abastado português, portanto um compatriota continental. Foi recebido de forma principesca, uma família farta e tão numerosa quanto os serviçais internos; jantaremos sozinhos, explicara o rubicundo beirão tropicalizado, as mulheres estorvam o entendimento e prendem-nos a língua. Acordou, na tarde seguinte, com a luz ferindo-lhe os olhos, a boca muito seca, sabor a aguardente-de-cana; ouviu baterem na porta, uma voz informou-o da refeição que o esperava na sala de jantar.

- Bom dia, senhor...?
- Ulisses... (voz, inferno)
- Ulisses?
- Sim, foi o meu padrinho a dar-me o nome. É o nome de um herói antigo, de um grande herói muito antigo, rei de uma ilha. Ajudou outro rei numa guerra.
- E depois? (olhos, limbo)
- Depois a guerra não acabava mais, cercaram o inimigo muitos anos mas ele resistia. Já todos estavam cansados mas nada se resolvia, foi Ulisses quem ajudou a conseguir a vitória. Depois... ele e os marinheiros voltavam para a sua ilha quando se levantou uma enorme tempestade. Perderam-se no mar por muitos anos, houve sempre problemas e obstáculos, não encontravam o caminho de casa.
- Ele só queria voltar para casa, tinha a mulher e o filho à espera, a ilha estava sem rei... (sorriso, paraíso)
- Afinal conhece a história?
Apenas haviam trocado frases, os dois poucos minutos, a matrona interrompera-os para não mais abandoná-los, como não a vira no dia anterior?, a sós. Horas depois regressara a casa, que desculpa poderia ter arranjado para ficar mais tempo?, esperavam-no os negócios e o artigo para o jornal, fizera o caminho de volta numa espécie de transe silencioso. Percebera que a ordem aprendida (eterna idade) do mundo podia ser erro e remorso, por que a havia confundido com uma serviçal?, ou culpa. Dois corvos acompanharam-no parte do caminho, imerso nos seus próprios sentidos, não lhes capturou a presença .

Três semanas que o senhor não dormia como antes, passeava como os apaixonados, caminhava no soalho, noite atrás de noite, tinta e papel, tinta e papel... nas manhãs, trazia cara quase cova, sorriso quase dor, voz suspiro fundo... Pedi a Oxum para lhe iluminar os sonhos, a Santa Efigénia pedi também. Ontem, primeiro tinta e papel, tinta e papel, depois dormiu... hoje, tinha brilho fogo nos olhos, decidiu viajar amanhã. Oxum, senhor vai no caminho do sonho acordado, Santa Efigénia, senhor vai no caminho do coração apressado... Oxum vai lhe guiar os passos, Santa Efigénia vai também.


M. Lisboa: 2014

Parque das Nações - cidade de Lisboa (fotografia: dulcecor)
 

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